quarta-feira, 12 de julho de 2017

Escola sem partido - uma análise

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A zona cinzenta do Escola sem Partido: Valter Nagelstein e o ensino do Holocausto (por Fernando Nicolazzi)
Publicado em: julho 10, 2017
 Não é fácil nem agradável examinar esse abismo de maldade, mas eu penso que se deva fazê-lo, porque o que foi possível perpetrar ontem poderá ser novamente tentado amanhã, poderá envolver a nós mesmos ou a nossos filhos” (Primo Levi).
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Ramiro Furquim/Sul21
Primo Levi, químico italiano que sobreviveu a Auschwitz, chamou de “zona cinzenta” uma situação bastante complexa que marcava algumas das formas de sobrevivência dentro dos campos de extermínio construídos pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Tratava-se de um espaço impreciso, físico mas também simbólico, que tornava ambígua e ambivalente a separação entre vítimas e algozes, criando uma indecifrável proximidade entre o opressor e aquele que, de uma forma ou de outra, colaborava com a opressão. Para Levi, ela “possui uma estrutura interna incrivelmente complicada e abriga em si o suficiente para confundir nossa necessidade de julgar” (Os afogados e os sobreviventes, 1986).
O caso-limite dessa situação, como sugeriu o autor, foi a existência e o funcionamento dos chamados Sonderkommandos, “esquadrões especiais” formados predominantemente por prisioneiros judeus, cinicamente recrutados pelos oficiais da SS, aos quais competia de forma compulsória o gerenciamento prático do extermínio, organizando a fila daqueles que seriam mortos nas câmaras de gás, recolhendo primeiro seus pertences, depois seus corpos já sem vida, transportando os cadáveres para os fornos crematórios e, por fim, eliminando as cinzas da morte. Todo esse processo cruel de impor à vítima uma cumplicidade inescapável com seu algoz mostra o limite a que se pode chegar a torpeza humana, e foi retratado de forma intensa e impetuosa no filme Filho de Saul (2015), do cineasta húngaro László Nemes.
Dentro dessa “zona cinzenta”, os nazistas tentaram elidir a fronteira moral entre aquele que sofre o crime e aquele que o comete. Para Levi, este foi “o delito mais demoníaco do nacional-socialismo” e aponta para a impertinência de qualquer tipo de julgamento em relação a tais indivíduos: “acredito que ninguém esteja autorizado a julgá-los, nem quem conheceu a experiência do Lager (campo de concentração), nem muito menos quem não a conheceu”.
Eis, portanto, um dos fatos mais nefastos dentro da nefasta história do Holocausto, história que os professores e professoras da rede municipal de ensino de Porto Alegre têm a necessidade de ensinar, entre outras razões, por conta da Lei 10.965/2010, que prevê a obrigatoriedade do “ensino sobre Holocausto do povo judeu”. A lei é de autoria do vereador Valter Nagelstein (PMDB/RS), o mesmo que protocolou o PLL 124/2016, versão local da ideologia do Escola sem Partido, que está atualmente em tramitação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre. Este Projeto de Lei prevê a “imparcialidade política e ideológica na condução do ensino e na prática do magistério”, preconizando aos docentes “a abstenção da emissão de opiniões de cunho pessoal que possam induzir ou angariar simpatia a determinada corrente político-partidária-ideológica”.
O que cabe aqui ponderar é como conciliar uma coisa com outra, isto é, o ensino do Holocausto do povo judeu no conteúdo programático da história com essa concepção, equivocada em suas premissas epistemológicas e pedagógicas, de uma educação desprovida de qualquer dimensão política e ideológica (o que não significa, nunca é demais repetir, defender proselitismo partidário nas escolas). Ora, a própria Lei 10.965 não está ela mesma assentada em uma compreensão política e ideológica sobre a história, implicando em uma tomada de posição contra as formas de extirpação dos inimigos perpetradas pelos nazistas?
Mas as consequências do projeto defendido pelo correligionário do ex-deputado Eduardo Cunha são ainda mais perigosas. Pois, se caberá aos professores e professoras de história simplesmente “passar um conteúdo”, atendo-se imparcialmente aos fatos efetivamente ocorridos e verificáveis, qual deveria ser sua postura em relação a experiências de tão grandes proporções éticas e sociais? Imaginemos, por exemplo, a afirmação diante de uma turma de história de que judeus atuaram diretamente na morte de judeus durante o Holocausto. Considerada fria e imparcialmente, ela é comprovável com base em testemunhos históricos, como o de Primo Levi, e estaria plenamente de acordo tanto com a lei sobre o ensino do Holocausto, quanto com o Projeto de Lei do Escola sem Partido.
Seria preciso, porém, colocarmos uma pergunta mais importante: tal afirmação estaria igualmente de acordo com os valores sociais e éticos que esperamos ser discutidos na escola, valores que devem funcionar como garantias contra toda e qualquer forma de preconceito social e de violência? Não seria necessário, por parte do docente, um claro posicionamento diante deste tipo de fato, ou seja, uma posição que teria ela própria uma dimensão política e ideológica, sem com isso se tornar um discurso meramente partidário? A formação humana voltada para o bem público e para a justiça social não depende disso?
O PLL 124, portanto, falha em definir claramente o que ele propõe, criando brechas para situações perigosas. Em outras palavras, o tipo vago e impreciso de “imparcialidade política e ideológica” defendido por Nagelstein parece obrigar que os docentes se abstenham de qualquer tipo de posicionamento diante daquele tipo de afirmação, deixando margem para que, porventura, a vítima se transforme em culpada no breve tempo de uma aula. Assim, essa “zona cinzenta” aberta pelo Escola sem Partido acaba por se equivaler ao caminho mais curto para a abstenção ética, permitindo espaço para que posições autoritárias tomem lugar e que situações horríveis do passado, esses “abismos da maldade”, acabem por ser naturalizadas ali mesmo onde devem ser objeto de crítica, ou seja, na escola.
Obviamente, essa ponderação diz respeito aqui ao ensino da história do Holocausto, mas poderia ser colocada para outros tantos temas sensíveis de nossa sociedade que demandam uma sólida formação ética, como a história da violência contra as mulheres, a história da escravidão, a história do racismo, da homofobia, das exclusões sociais e assim por diante. Eis porque o projeto Escola sem Partido deve ser recusado e refutado por qualquer sociedade que se pretenda democrática e inclusiva.
Creio que Primo Levi definiu bem essas questões, ao dizer que “cada época tem seu fascismo: seus sinais premonitórios são notados onde quer que a concentração de poder negue ao cidadão a possibilidade e a capacidade de expressar e realizar sua vontade. A isso se chega de muitos modos, não necessariamente com terror da intimidação policial, mas também negando ou distorcendo informações, corrompendo a justiça, paralisando a educação, divulgando de muitas maneiras sutis a saudade de um mundo no qual a ordem reinava soberana e a segurança dos poucos privilegiados se baseava no trabalho forçado e no silêncio forçado da maioria” (Um passado que acreditávamos não mais voltar, 1974).
Por tais razões, não causa surpresa alguma que o mesmo vereador seja o autor dos dois projetos de lei mencionados. Sabemos que a ideologia Escola sem Partido adentrou as esferas dos poderes legislativos por solicitação da família Bolsonaro no Rio de Janeiro. Das formas mais variadas e condenáveis possíveis, inclusive em uma associação hebraica, os membros dessa família manifestaram seu ódio social e seus preconceitos raciais em relação àqueles ou àquelas que simplesmente vivem ou pensam de formas diferentes das deles.
Com tom não tão distante disso, Valter Nagelstein já afirmou publicamente sua intenção com o PLL 124: “extirpar” o que ele chama de “doutrinadores do ensino” que, no seu tortuoso raciocínio, seriam os responsáveis pela “derrocada da nossa educação”. O ensino da história, quando feito sem censuras ou mordaças, mostra muito bem outras situações em que se tentou, por meio de leis autoritárias e medidas de exceção, extirpar indivíduos considerados culpados pelos males de uma nação. O Holocausto foi uma delas.
Fernando Nicolazzi, Professor do Departamento de História da UFRGS.
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Editoria: Opinião Pública

 

terça-feira, 11 de julho de 2017

A formação de uma sociedade do medo através da influência da mídia

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Raquel do Rosário e Diego Augusto Bayer
Sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
Por Raquel do Rosário e Diego Augusto Bayer
A Mídia tem um papel importante no campo político, social e econômico de toda sociedade. Através desse mecanismo essa instituição incute na população uma consciência, uma cultura, uma forma de agir e de pensar.
O crime desperta curiosidade na população por apresentar uma ameaça. A mídia atua explorando essa fragilidade humana estimulando a sensação de insegurança. A televisão tornou-se um fenômeno em massa, assim como, a alta taxa de criminalidade e, com isto, também cresce a sensação de medo e insegurança em toda população.
Por nos encontrarmos em uma crise de credibilidade política, os telejornais procuram outras categorias informativas para traduzir o interesse da sociedade — geralmente notícias violentas. Assim, a curiosidade pela narração do crime e suas possíveis consequências acabam por ser uma das causas de uma nova cultura de violência, em que essa aparece como um fato normal, corriqueiro, que faz parte do cotidiano.
Não há com um grau de certeza a confirmação de que os meios de comunicação influenciem na opinião pública, o fato é que existe uma influência mútua entre o discurso sobre o crime — atos violentos — e o imaginário que a sociedade tem dele e entre as notícias e o medo do delito. Com isso, pode-se sustentar que existe uma relação sólida entre as ondas de informação e a sensação de insegurança.
A televisão se tornou um eletrodoméstico indispensável em qualquer lar e, hoje, informar é fazer assistir. Quando a transmissão é ao vivo, as imagens passam uma veracidade ainda maior aos telespectadores que deixam de lado as possíveis consequências do fato noticiado.
Em uma sociedade como o Brasil, com altos índices de criminalidade, acabam por encontrar um mecanismo de escape na tela da televisão. Conforme relatam Cristiano Luis Moraes e Marlene Inês Spaniol, os medos passam a ser dramatizados em histórias de vingança e de criminosos que são levados aos tribunais e posteriormente à prisão. Isso leva a sociedade a reagir contra o crime como se ele fosse um drama humano, levando-nos a crer que os delinquentes são em maior número e praticam mais delitos do que realmente o são.
A origem do Medo
Desde muito pequeninos aprendemos a temer o medo e a confiar em celestiais criaturas e muitos passam a serem nossos monstros, concepções imaginárias que nos assombram em um quarto escuro, em um sonho, em uma visita ao médico ou dentista, em situações que estamos longe de nossos genitores e nos sentimos ameaçados. No início de nossa existência tudo é seguro, puro e invisível aos olhos. À medida que nos tornamos maiores – criança, adolescentes, jovens, adultos e idosos – o medo passa a ser um de nossos principais inimigos e será ele que, em muitos momentos, nos impedirá de seguir nossos sonhos, de arriscar uma tentativa ou de fazer uma mudança radical. O medo passa a ser parte de nossa vida e em tudo que fazemos sempre estará presente de alguma forma e por algum motivo. Assim, aprendemos a temer o medo.
Segundo Bauman (2008, p. 8), medo é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito. Vivemos numa era onde o medo é sentimento conhecido de toda criatura viva.
Boldt (2013, p.96) assinala
Tema central do século XXI, o medo se tornou base de aceitação popular de medidas repressivas penais inconstitucionais, uma vez que a sensação do medo possibilita a justificação de práticas contrárias aos direitos e liberdades individuais, desde que mitiguem as causas do próprio medo.
O medo pode surgir das mais variadas maneiras e nascer de qualquer canto de onde vivemos, inclusive, em nossos próprios lares. Temos medo de comida envenenada, de perder o emprego, de utilizar transporte público, de pessoas desconhecidas que encontramos na rua, de pessoas conhecidas também, de inundações, de terremotos, de furacões, de deslizamento de terras, da seca. Temos medo de atrocidades terroristas, de crimes violentos, de agressões sexuais, de água ou ar poluído, de entrar na própria casa e de sair dela, de parar no semáforo. Temos medo da velhice e de ficarmos doentes, de sermos ameaçados, furtados ou roubados. Temos medo da bolsa de valores e da crise econômica. Temos medo de voar de avião. São tantos os nossos medos que não caberia aqui relatarmos todos.
Para Bauman (2008, p.18), riscos são perigos calculáveis. Uma vez definidos dessa maneira, são o que há de mais próximo da certeza. Ou seja, o futuro é nebuloso e as pessoas não deveriam se preocupar em vencer ou não qualquer situação de risco porque, talvez, nunca se chegue a enfrentá-la. Mas, deve prever e tentar evitar oferecendo a si mesmo um grau de confiança e segurança, ainda que sem garantia de sucesso.
A mídia pode ser considerada aqui uma causadora da proliferação do medo na sociedade, pois o medo deixou de relacionar-se a estórias de contos e mitos, da imaginação durante reuniões de família, para ser um aglomerado de imagens e informações que a televisão transmite todos os dias dentro de cada lar e para todas as famílias. A sociedade deixou de imaginar os contos para viver na realidade concreta as situações que são transmitidas através dos telejornais e programas de entretenimento.
O mundo líquido mostrado por Bauman é uma espécie de irrealidade dentro da qual estamos mergulhados, um mundo de aparência absoluta, de ameaças que quase nunca se configuram reais, mas que nos são mostradas cotidianamente, principalmente pela mídia. Diante disso, ele expõe o medo como uma forma inconstante. Podemos ter medo de perder o emprego, medo do terrorismo, da exclusão. O homem vive numa ansiedade constante, num cemitério de esperanças frustradas, numa era de temores.
E, assim, passamos a construir inimigos e fantasmas, nos deixando levar por todo tipo de informação que nos é imposta sem nem ao menos questionar a real veracidade dos fatos. É inegável que vivemos em uma sociedade violenta, com altos índices de barbáries, mas o problema não está na prevenção de possíveis ameaças, mas em considerar que tudo e todos possam ser ameaçadores. Ou seja, viver em alerta constante, excluindo pessoas e julgando indivíduos sem nem ao menos conhecer por medo do perigo que esse indivíduo possa lhe trazer.
O sentimento de insegurança não deriva tanto da carência de proteção, mas, sobretudo, da falta de clareza dos fatos. Nessa situação difunde-se uma ignorância de que a ameaça paira sobre as pessoas comuns e do que deve ser feito diante da incerteza ou do medo. A consequência mais importante é uma crise de confiança na vida, uma vez que, o mal pode estar em qualquer lugar e que todos podem estar, de alguma forma, a seu serviço, gerando uma desconfiança de uns com os outros.
A influência da mídia e sua relação com o medo
A mídia tem por objetivo atender as expectativas imediatas dos indivíduos. Ela pode ser definida como o conjunto de meios ou ferramentas utilizados para a transmissão de informações ao público assumindo um papel muito importante na formação de uma sociedade menos conflituosa. Porém, em uma realidade complexa como a nossa, a mídia desempenha um papel garantidor da manutenção do sistema capitalista, fomentando o consumo, ditando regras e modas e agindo sobre interesses comerciais.
A mídia notoriamente tem papel importante na conjuntura social atual, pois exerce influência em todos os campos, seja na família, na política e na economia, incutindo na população uma forma de agir e pensar importante para a manutenção da ordem.
A mídia, quando tomou corpo de mercadoria, era disponibilizada somente para as famílias mais abastadas. Aos poucos esse público foi sendo ampliado e o acesso a esse tipo de informação chegou também à população menos favorecida ocasionando o que temos hoje, um público em massa dos meios de informação através, principalmente, da televisão.
Schecaira (apud BAYER, 2013) entende que a mídia é uma fábrica ideológica condicionadora, pois não hesitam em alterar a realidade dos fatos criando um processo permanente de indução criminalizante. Assim, os meios de comunicação desvirtuam o senso comum através da dominação e manipulação popular, através de informações que, nem sempre, são totalmente verdadeiras.
Com isso, propagando o medo do criminoso (identificado como pobre), os meios de comunicação aprofundam as desigualdades e exclusão dessa parcela da sociedade, aumentando as intolerâncias e os preconceitos. Utiliza-se do medo como estratégia de controle, criminalização e brutalização dos pobres, de forma que seja legitimo as demandas de pedidos por segurança, tudo em virtude do espetáculo penal criado pela imprensa.
Criam-se normas penais para a solução do problema, porém, o Direito Penal passa a ser apenas um confronto aos medos sociais, ao invés de atuar como instrumento garantidor dos bens juridicamente protegidos.
Hoje, vivemos em constante situação de emergência e deixamos de perguntar pelo simples fato de estar provada a barbaridade dos outros. A partir daí, muros são construídos para separar a sociedade. Há muros que separam nações entre pobres e ricos, mas não há muros que separam os que têm medo dos que não têm (COUTO, 2011).
A manipulação das notícias através dos meios de comunicação aumentam os medos e induzem ao pânico, reforçando uma falsidade à política criminal e promovendo a criminalização e repressão, ofertando ao sistema penal uma legitimação para uma intervenção cada vez mais repressiva, criando um verdadeiro Estado Penal.
A mídia exerce influência sobre a representação do crime e também do delinquente em razão do constante destaque que se dá aos crimes violentos. Assim, a mídia vai colaborando o processo de construção de “imagem do inimigo” – no Brasil quase sempre como dos setores de baixa renda – mas também auxilia na tarefa de eliminá-los, desconsiderando da ética e justificando a opressão punitiva.
Através de uma seleção de conteúdos a mídia tem o poder da construção da realidade, que é um poder simbólico. Esse poder simbólico procura reproduzir uma ordem homogeneizada do tempo e do pensamento, com um único objetivo, a dominação de uns sobre os outros. Com isto, criam sujeitos incapazes de contestar o que se lhes é apresentado de forma a garantir a ordem, a torná-los submissos e dominados.
A mídia incute na sociedade uma política de higienização e rotulação dos desiguais que devem ser banidos da convivência social. Diante da propagação dessa política, cada vez mais os cidadãos são colocados diante de questões criminais que parecem nunca se resolver provocando uma sensação de intranquilidade e medo. Esse último, por sua vez, é agravado pela sensação de vulnerabilidade e de impossibilidade de defesa.
A realidade entre medo e verdade
A frequente exposição da crescente criminalidade através da mídia cria um sentimento de insegurança irreal, sem qualquer fundamento racional.
Na realidade, o principal objetivo da mídia é chamar a atenção do público e obter lucro. Assim, a mídia passa a utilizar expedientes sensacionalistas com fatos negativos como crimes e catástrofes, disseminando um sentimento de insegurança no seio social, ocasionando o surgimento da cultura do medo e formando uma “Sociedade do Medo”. Ou seja, nem tudo que vimos nos telejornais são de extrema veracidade, grande parte desta informação tem uma intenção do porque ser transmitida e, essa intenção, estará sempre relacionada a um fim lucrativo e dominador social.
De acordo com Silveira (2013), para dar sustentação ao ciclo que por diversas formas fomenta o consumo e acarreta o lucro, a mídia, seguindo os ditames da indústria cultural, interage com o público receptador das informações de uma forma muito particular, visto que consegue se adaptar perfeitamente às mais diversas classes, idades e tipos de pessoas, buscando uma relação com o público médio.
Há mais medo do que medo propriamente dito. A televisão tenta retratar os fatos de forma a tornar a informação o mais real possível aproximando os acontecimentos do cotidiano das pessoas e fazendo-as crer que aquela situação de risco poderá acontecer a qualquer momento dentro de suas próprias casas, nos seus grupos sociais. Assim, os telejornais propagam informações sensacionalistas através da exploração da dor alheia, do constrangimento de vítimas desoladas e da violação da privacidade de algumas pessoas. Para chamar a atenção do público, ainda lançam mão de outros recursos semelhantes, como a incitação de brigas entre vizinhos nos bairros populares e os crimes de violências sexuais cometidos por membros de uma mesma família.
Desta forma, mesmo que estejamos mais seguros do que em toda história da humanidade, mesmo assim, as pessoas continuam a se sentir ameaçadas, inseguras e apaixonadas por tudo aquilo que se refira à segurança e à proteção. Isso se dá através do que Silveira (2013) chama de “cultura do medo”, ou seja, o que tem levado as pessoas a intensificarem suas próprias medidas visando uma suposta diminuição de vulnerabilidade, como a construção de muros e barreiras, assim como a se isolarem dentro de suas próprias casas, evitando sair a eventos e espaços públicos por medo da violência, o que configura uma mudança radical de comportamento, algo que beira a paranoia.
Esta forma de isolamento dos conflitos ocasiona uma espécie de divisão social, onde as pessoas economicamente privilegiadas passam a ocupar bairros considerados “nobres” e condomínios vigiados continuamente, restando para a camada mais pobre da população, territórios completamente negligenciados pelo Estado, locais em que a “elite” busca o distanciamento, diz Silveira (2013). E complementa ainda Silveira (2013, p. 300) que “O homem enfrenta grandes dificuldades em conseguir ver o outro como um semelhante e não como um concorrente a ser eliminado”.
Toda essa realidade que se forma na “cultura do medo” acaba por contribuir para o reforço dos preconceitos na esteira da ignorância e da insegurança. Com isso, cria-se a “Sociedade do Medo” aqui abordada que, além de cruel e preconceituosa, passa a ser ignorante e submissa a tudo que lhe é apresentado como verdade absoluta.
César Vinícius Kogut e Wânia Rezende Silva expõe que o medo é fenômeno de paralisação do senso normal da vida, altera relações de formas e espaços, traz à tona uma imagem duvidosa, reflete insegurança, tristeza e dá noção de fragilidade. Por isso, uma das missões fundamentais do Estado deveria ser realizar ações para minimizar problemas e reduzir o medo proporcionando à população uma melhor qualidade de vida, libertando os indivíduos desse sentimento para que vivam em segurança.
Saber que este mundo é assustador não significa viver com medo. Nossa vida está longe de ser livre do medo, assim como, livre de ser livre de perigos e ameaças, porém, não podemos permitir que o que vimos na TV influencie nossa vida a ponto de pararmos de viver, a ponto de guardarmos sonhos que gostaríamos de realizar ou de nos impedir de promover uma mudança. Não devemos nos preocupar com o que ainda não aconteceu, mas procurar sim evitar situações que possam nos colocar em risco e, até mesmo, nos proteger do perigo. Tudo, porém, sem permitir que o medo e a insegurança tome conta de nosso ser e do que somos.
Julga-se importante estabelecer os limites éticos da atuação da mídia, de forma que, respeitem a ordem legal, discipline as atividades e defina suas responsabilidades em relação às pessoas atingidas pela informação que se divulga, sem, é claro, que se perca o direito de informar e de ser informado. É preciso que a mídia banalize menos e instrua mais, sem decidir por si o que as pessoas devem pensar e a forma como elas devem agir em relação ao que foi noticiado.
Por vivermos em uma sociedade complexa, onde o Estado já não mais é capaz de cumprir com seu papel de proporcionar segurança à população, facilita ainda mais a instalação do medo inconsciente das pessoas.
Assim, resta à sociedade acreditar naquilo que é transmitido pela mídia e esperar por um futuro melhor, com menos violência e crimes hediondos. Até lá, a vida segue com uma completa divisão social, na medida em que a elite escolhe seus inimigos nas camadas mais pobres da população e continuam condenando aqueles que menos recursos têm: os já predestinados ao fracasso no sistema.
Como expõe Loïc Wacquant: “tranque-os e jogue fora a chave’ torna-se o leitmotiv dos políticos de última moda, dos criminólogos da corte e das mídias prontas a explorar o medo do crime violento (e a maldição do criminoso) a fim de alargar seus mercados”. Afinal, é esta política que ultimamente tem ganho voto e feito os políticos se elegerem.
Agora, quando os seus direitos e suas garantias fundamentais forem tiradas, só lhe restará sentar no meio fio e chorar, afinal, você pode ter legitimado tudo isso. Cuidado, muito cuidado.
Raquel do Rosário é Formada em Letras pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE); Especialista em Inglês como segunda língua pela Central Piedmont Community College (CPCC) – Carolina do Norte / USA; Mestre em Ciências da Educação pela Universidade Católica Portuguesa (UCP) – Lisboa / Portugal; Graduanda do Curso de Direito pelo Centro Universitário – Católica de Santa Catarina / Brasil. Email: raquelteacher@hotmail.com
Diego Bayer é Advogado criminalista, Doutorando em Direito Penal, Professor de Penal e Processo Penal da Católica de Santa Catarina e autor de obras jurídicas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAYER, Diego Augusto. A Mídia, a reprodução do medo e a influência da política criminal. In. Controvérsias Criminais: Estudos de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia. Jaraguá do Sul. Letras e Conceitos. 2013.
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Tradução, Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Ed. 2008.
BOLDT, Raphael. Criminologia midiática: Do discurso punitivo à corrosão simbólica do Garantismo. Curitiba: Juruá, 2013.
KOGUT, César Vinícius & SILVA, Wânia Rezende. A Mídia e seus Efeitos sobre o Medo Social. SESP– UEM.
MORAES, Cristiano Luis de Oliveira & SPANIO, Marlene Inês. Punição e mídia: análise de alguns aspectos que influenciam na violência e na criminalidade.
PELUZO, Vinicius de Toledo Pisa. Sociedade, mass media e Direito Penal: uma reflexão. Revista da Escola Paulista da Magistratura, 2003.
SILVEIRA, Felipe Lazzari da. A cultura do medo e sua contribuição para a proliferação da criminalidade. 2º Congresso Internacional de Direito e Contemporaneidade. Santa Maria / RS UFSM – Universidade Federal de Santa Maria, 2013.
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Trad. Nilo Batista. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

 

A origem do medo: Porque a segurança é uma ilusão

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A origem do medo: Porque a segurança é uma ilusão
publicado em sociedade por Laís Matos
Desde que nascemos, somos condicionados a ter medo. O medo é fruto de uma cultura que nasceu junto com o homem e se converteu em estratégia de domínio e poder sobre o povo.
A vida é maravilhosa se não se tem medo dela. (Charles Chaplin)

Ainda quando você é um bebezinho e está começando a andar, você aprende que não pode subir na janela, nem soltar a mão da mamãe na rua. Você descobre que se pegar na panela do fogão vai se queimar ou vai se arrepender se colocar o dedo na tomada. A criança pode até fazer alguma dessas coisas, mas a primeira lição que ela aprende é que SE ela fizer isso, algo ruim acontece.
Desde o inicio da humanidade o homem descobriu que o medo é capaz de dominar povos inteiros. No Egito antigo, os faraós já usavam dessa estratégia para construir impérios e se fortalecer cada vez mais. O mesmo foi feito por grandes líderes das civilizações antigas. No entanto, o caso mais bem sucedido até hoje é o cristianismo. Os valores judaico cristãos estão enraizados na cultura ocidental e refletem em nós direta e indiretamente. Até quem se diz não religioso, sofre com o pecado e a culpa impostos em nós inconscientemente.
E é inevitável, o medo nasce no pensamento. Não dá para saber qual medo é instintivo e qual medo é imposto, seja através do meio em que se vive ou das experiências particulares de cada um. O medo é decorrente do desejo, componente que dá movimento ao ser humano.
No entanto, o medo não é mau, o medo é o elemento de sobrevivência do homem. Um mecanismo de aprendizagem. Tudo que fazemos é porque temos medo de morrer e tentamos prolongar nossa vida ao máximo - nos alimentamos, usamos remédios e vacinas, buscamos uma forma de nos sustentarmos, trancamos a porta da casa a noite e evitamos mudar a temperatura do chuveiro com ele ligado. - tudo que o homem faz desde que nasce é retardar a sua morte.
O problema é quando o homem usa o medo como ferramenta de controle. É o que acontece na televisão, com a religião e nos próprios valores morais. A sociedade vive em uma atmosfera de ansiedade e fragilidade emocional. Algumas pessoas levam uma vida regrada e cautelosa alimentadas pelo bicho papão pós moderno, a cultura do medo.
O próprio sistema capitalista que prega em sua essência o individualismo ajuda a fomentar a cultura do medo. O consumismo e a competição levam o individuo a participar de um modelo egoísta e alienante. A pessoa teme perder o que ela conquistou, teme ser vista como fraca ou pobre. O mérito é a chave para alcançar uma posição de destaque.
O terror pregado pela televisão (em outras mídias também) tem provocado recentemente um clima de preocupação com seus programas policiais de banalização da violência. Nesses programas, o objetivo não é informar e sim causar choque, pânico. A pessoa assiste a crimes horrendos tratados com naturalidade, já que a violência é vista como implacável e parte do cotidiano. O telespectador passa a ter medo de sair de casa - e de ficar em casa também.
Criou-se a ilusão da segurança. A segurança não passa de uma palavra inventada para trazer conforto a gente. De fato, as pessoas podem prevenir certos acontecimentos, mas ninguém tem domínio sobre eles e por isso, não se deve acreditar em uma vida livre de possíveis riscos. Segurança não é garantia, é alimento para o medo.
Assim como Foucault disse sobre os meios docilização do homem - hospital, escola, hospício - o medo tem o mesmo princípio que essas instituições. A ‘instituições de sequestro’ cuidam de disciplinar o indivíduo, adestrar, faze-lo aprender as regras fundamentais da sociedade (ou confina-lo caso não obedeça). O medo não é uma instituição, com corredores cheios de salas e pessoas uniformes, mas pretende "ensinar" o homem a se adequar na sociedade. E por isso pode ser considerado também como uma relação de poder.
Seja pela forma de governo imperialista dos Estados Unidos ou pelo valentão que te batia na escola, a liberdade do homem é ceifada no momento em que o medo lhe é imposto e passa a ser sua condição de sobrevivência.
Sempre que nos vemos tentados a fazer um coisa nova, imediatamente pensamos em algo que nos impeça de fazer. Sentimos medo de nos arriscar porque crescemos vendo e ouvindo que apenas os tolos ignoram seus medos. Ou que homem é livre mas deve temer as consequências dos seus atos, quando na verdade ele deve apenas ser responsável. Há uma diferença entre o temor e o bom senso, que muita gente confunde. E justamente no bom senso que cabe a árdua tarefa de decidir o que é ou não viável.
O medo é nossa prisão diária, que nos mantém vivos e ao mesmo tempo nos afasta de viver em liberdade. Em um mundo onde todos querem o nosso medo, terminamos condenados a amar nossas amarras.
Ninguém leva a sério. Ama comer, ver filme e faz jornalismo porque gosta das palavras.
Saiba como escrever na obvious.