Fiori: a impotência dos economistas liberais
- Jornalista: Maria Carla
- 11 de abril de 2019
A produção declina, o desemprego volta a crescer,
os investimentos não voltarão tão cedo. Mas eles insistem na miragem “Reforma
da Previdência” – como se quisessem voltar a Pinochet, aos banhos de sangue, ao
fascismo de mercado.
“Quem diria que no começo do mandato de um governo
liberal ele iria sancionar subsídios e discutir a retomada de proteções
setoriais. Não é só a tarifa do leite, é a proteção de bens de capital”.
Marcos Lisboa, O Globo, 18/02/2019
Súbito, fez-se o consenso, e já não é mais possível
tapar o sol com a peneira: no primeiro trimestre de 2019, a economia brasileira
entrou em marcha forçada na direção do colapso. Em apenas três meses, o mercado
reduziu quatro vezes seguidas seu prognóstico com relação ao crescimento do PIB
de 2019, que caiu de 3% para 1.8%. E tudo indica que seguirá caindo, tanto que
o próprio mercado reconhece que não haverá retomada dos investimentos neste
ano, qualquer que seja a circunstância. Pelo Índice de Atividade Econômica do
Banco Central (o IBC-BR), a economia brasileira recuou 0,41% no mês de janeiro,
enquanto a produção industrial despencava 0,8% no mesmo mês, segundo o IBGE. No
acumulado do trimestre, o preço da gasolina subiu 28,3% e, no mês de março, a
produção de veículos caiu 6,4% com relação a fevereiro, enquanto a capacidade
ociosa da indústria química chegou a 25%, e a da economia brasileira ronda os
40%. A taxa de desemprego subiu de 11,6% para 12,4%, e o número de
desempregados chegou aos 13 milhões, com aumento de um milhão em apenas três
meses, numa economia que já tem 27,9 milhões de subempregados, em uma sociedade
que voltou a ter 21% da sua população abaixo da linha da pobreza. Por fim, as
receitas federais e o otimismo dos empresários e da população vêm caindo de
forma acelerada e contínua.
Tudo isto poderia ser apenas um soluço econômico,
mas não é. Na década de 2011 a 2020, a taxa média esperada do crescimento anual
da economia brasileira deverá ser de apenas 0,9%, segundo estudo publicado pelo
IBRE, da Fundação Getúlio Vargas. Uma taxa média menor que a da década de 80,
que foi de 1,6%, e por isso chamada de “década perdida”. Segundo esse mesmo
estudo do IBRE/FGV, o crescimento médio desta década deverá ser o pior dos
últimos 120 anos da história brasileira, implicando um empobrecimento anual dos
brasileiros na ordem de 0,3% do PIB ao ano. E não há no momento a menor
perspectiva de reversão deste quadro, com a taxa de investimento da economia
brasileira girando em torno dos 15,5%, taxa muito inferior à do Chile ou do
México, que está na casa dos 20%, e muitíssimo inferior à taxa de investimento
de alguns sócios brasileiros do BRICS, como é o caso da China, que investiu
44,18% do PIB em 2018, ou mesmo da Índia, que investiu 31,4% no mesmo período,
segundo dados do FMI.
Uma situação que fica ainda mais difícil para o
Brasil, num momento em que o mercado mundial de bônus vem caindo, sobretudo no
caso dos bônus do governo alemão e dos títulos do tesouro norte-americano,
tornando os investidores internacionais cada vez mais reticentes, apesar do
afrouxamento da política monetária do BCE e do FED. O economista Lawrence
Summers, ex-secretário do Tesouro norte-americano, considera que a economia
mundial está entrando num longo ciclo de “estagnação global”, enquanto outros
economistas falam do descenso de mais um ciclo de Kondratiev, mas a
consequência é a mesma: para sair do buraco nessa conjuntura internacional, o
Brasil terá que contar com seus próprios recursos e estímulos, para poder
crescer de maneira contínua, a taxas de 3 e 4%, em um período de pelo menos 5 a
10 anos. É a única forma de absorver a capacidade ociosa e eliminar o
desemprego, retomando o caminho do crescimento indispensável para que uma
economia “atrasada” ou “imatura” consiga vencer sua miséria, reduzir sua
desigualdade social e participar, em igualdade de condições, da competição
entre as nações pela riqueza mundial.
Para enfrentar esse desafio, os economistas
liberais têm uma proposta simples e recorrente: reformar a Previdência,
privatizar empresas estatais e fazer reformas institucionais que abram e
desregulem os mercados. Com relação à proposta de privatização da Previdência,
balanço recente da Organização Internacional do Trabalho (OIT) constata que dos
30 países que fizeram a mesma reforma, entre 1981 e 2014, 18 já voltaram atrás
em decorrência do fracasso de seus novos sistemas de capitalização, iguais ao
que está sendo proposto no Brasil. E a própria reforma chilena, que foi
concebida pelo economista José Piñera, do grupo dos Chicago Boys, e depois
imposta por decreto ditatorial do General Pinochet em 1981 (ou seja, oito anos
depois do golpe militar de 1973), hoje vem sendo questionada de forma cada dia
mais agressiva, por uma verdadeira massa de idosos, pobres ou miseráveis,
frustrados com os resultados desastrosos do novo sistema.
De qualquer maneira, independentemente do seu custo
social e do seu verdadeiro impacto fiscal, o que importa destacar é que a
privatização da Previdência não tem, nem nunca teve, nenhuma conexão direta com
a taxa de investimento da economia, e portanto também não tem nenhuma
capacidade de induzir crescimento econômico. E tudo o que os economistas
liberais dizem sobre este assunto envolve uma especulação mágica e psicológica
sobre as “expectativas dos investidores”, que não tem nenhuma base teórica nem
evidência empírica, inclusive porque os “investidores” já podem ter perdido sua
“confiança” e seu “interesse” na “sobre-oferta” mundial de reformas da
Previdência. Por outro lado, a privatização das demais empresas estatais só
gera recursos do tipo once for all, e não garante nenhum tipo de
investimento posterior dentro da economia brasileira.
O mesmo pode ser dito com relação às demais
“reformas” de que falam os economistas liberais, visando desregular e abrir os
mercados. Qualquer economista, de qualquer tendência teórica, sabe que nenhuma
dessas reformas irá reacender, por si mesma, o “animal spirit” dos
investidores, capaz de recolocar a economia brasileira na trilha do
crescimento. Deste ponto de vista, é bom olhar para a experiência recente da
Argentina de Mauricio Macri, que depois de três anos adotando políticas
ortodoxas e reformas liberais – incluindo a reforma da Previdência – teve um
crescimento negativo do PIB de 2,5% em 2018, e tem uma previsão de queda de
3,1% para 2019. Um resultado desastroso, que se soma a uma taxa de inflação que
está na casa dos 47%, com um desemprego de 9,1 % e com 32% da população
argentina situada abaixo da linha de pobreza.
Nada disso, entretanto, parece atingir ou afetar a
inabalável crença dos economistas liberais, no cálculo utilitário do homo
economicus, na existência de mercados abertos e desregulados, e na
possibilidade de separar a economia capitalista do poder do Estado. É quase
impossível para um economista liberal entender e aceitar que a economia envolve
relações sociais de poder, e é parte de uma luta pela riqueza entre as grandes
corporações e os grandes Estados nacionais. Os economistas liberais raciocinam
como se estivessem no ponto zero da história, dentro de uma economia homogênea
e com atores equipotentes quando, de fato, vivem numa sociedade que já é, de
partida, desigual e heterogênea, envolvendo interesses econômicos e sociais
excludentes e conflitivos. E tudo isto dentro de um sistema internacional em
que os grandes Estados se valem de suas economias nacionais como instrumentos
na sua luta pelo poder e a riqueza internacionais.
Dentro deste pensamento abstrato e irreal dos
economistas liberais, é um grande passo teórico e um avanço realista a
redescoberta da teoria estatal da moeda, de Georg Knapp, com o reconhecimento
da relação indissolúvel entre o poder e a moeda – mesmo quando seja necessário
acrescentar ao raciocínio de Knapp que a autonomia econômica dos Estados com
relação ao manejo de suas próprias moedas também depende da sua posição dentro
da hierarquia mundial do poder político e militar. Mas este já seria outro
assunto e outra discussão.
Por isso voltemos ao ponto central do nosso
argumento quanto à impotência da resposta dos economistas liberais frente ao
desafio que o Brasil está enfrentando neste final da segunda década do século
XXI. Do nosso ponto de vista, como já dissemos, os economistas liberais partem
de premissas teóricas que desconhecem a complexidade do mundo real, nacional e
internacional, e defendem um pacote de “reformas” que não leva em conta a
heterogeneidade dos interesses e as hierarquias de poder que separam e
contrapõem os capitais individuais e as classes sociais e, finalmente, propõem
políticas e medidas que não foram concebidas para promover o crescimento
acelerado de países “atrasados” ou “imaturos”. Isso talvez ajude a entender por
que os empresários e economistas liberais sejam sempre os primeiros a ser
chamados, mas sejam também os primeiros a ser dispensados pelos governos
brasileiros que nasceram dos golpes militares – de 24 de outubro 1930, de 19 de
novembro de 1937, de 29 de outubro de 1945, de 24 de agosto de 1954 e de 31
março de 1964.
No sentido inverso, talvez também sejam essas
mesmas recorrências históricas do passado que expliquem a paradoxal admiração
contemporânea de alguns economistas liberais brasileiros pelo Sr. Augusto
Pinochet, a figura por excelência de governante violento, ignorante e corrupto,
que se dedicou durante 15 anos à eliminação física de seus adversários e de
toda a atividade política dissidente do seu país. Um verdadeiro “banho de
sangue” que permitiu, em última instância, que os Chicago Boys chilenos
pudessem impor ditatorialmente suas políticas e reformas, por cima de 3 mil
pessoas mortas e mais 20 mil chilenos torturados, em nome do regime que outro
economista norte-americano, Paul Samuelson, chamou de “fascismo de mercado”.
Artigo de José Luís Fiori | Imagem: Salvador
Dalí,O sono (1937) | Fonte: Outras Palavras
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