Por que nunca precisamos de cotas no futebol?
publicada quarta-feira, 21/11/2012 às 09:24 e
atualizada quarta-feira, 21/11/2012 às 13:13
O lugar do negro
Por Felipe Carrilho,
colunista do Escrevinhador
“Nós não temos um problema racial. No Brasil, os
negros conhecem o seu lugar”, diz um sinistro ditado, que poderia servir de
epígrafe para análises de intelectuais conservadores ou mesmo para ilustrar
muitos comentários que se lê por aí nas redes sociais em tempos de
implementação de políticas reparatórias por parte do governo federal.
Muitas são as janelas que permitem sondar a
dinâmica social de um país. Esta coluna procura fazer isso por meio da história
do futebol brasileiro. No mês da Consciência Negra, cabe indagar em que medida
o processo de integração dos descendentes de africanos no esporte que se tornou
uma verdadeira “instituição nacional” pode revelar o destino social que a
população negra do Brasil teve no período pós-abolição do sistema escravocrata.
No final do século 19, a intelectualidade do País
estava empenhada em discutir a questão da nacionalidade brasileira que tinha na
presença do negro, no seu entender, um problema crônico. Optou-se, então, por
uma política de branqueamento, na qual o incentivo à imigração europeia para
abastecer as lavouras de café e a produção da indústria era fundamental. Para
Oliveira Viana, o apologista mais notório da arianização da nossa sociedade, o
mestiço representava um atraso inevitável para o Brasil que só poderia ser
amenizado com a diluição gradual e progressiva do elemento negro.
Nas décadas subsequentes, apartados do trabalho
formal, os descendentes de africanos foram protagonistas no processo de
democratização do futebol, cuja prática estava até então reservada para os
filhos das nossas elites, encastelados nos clubes grã-finos das principais
cidades. Atuando nos times de várzea, com bolas e uniformes muitas vezes
improvisados, o negro mostrou competência esportiva e esteve no centro da luta
pela profissionalização do futebol, que dava estatuto de trabalhador formal ao
jogador.
Em seu livro Corações na Ponta da Chuteira, o historiador Fábio Franzini
apresenta uma emblemática disputa ocorrida no dia 13 de maio de 1927. Um jogo
que opunha duas seleções, a dos brancos, jogadores das maiores equipes
paulistas da Associação Paulista de Esportes Atléticos, e a dos negros, que
atuavam em divisões secundárias ou mesmo em clubes da liga amadora. O jogo
terminou com a vitória da “seleção negra” por 3 a 2, e o sucesso de público fez
com que o encontro fosse repetido por mais de 10 anos, com ampla maioria de
vitórias dos negros.
É possível inferir muita coisa desse fato
histórico. Primeiro que, apesar da demonstração de domínio das técnicas do
jogo, o negro ainda encontrava-se na periferia do futebol, atuando em equipes
menores. Depois, sob o pretexto de celebrar a abolição (13 de maio passou a ser
a data oficial do evento), explicitava-se naturalmente a segregação dos campos
de São Paulo. Mas o que interessa enfatizar aqui é o surgimento de um discurso
de elogio às potencialidades do negro dentro de campo. Discurso com implicações
variadas.
O mito do nascimento do estilo brasileiro de jogar
conta que foi a partir da inclusão das classes populares, notadamente dos
afro-descendentes, que nos apropriamos de fato daquele esporte surgido na
Inglaterra em meados do século 19. Para Gilberto Freyre, a conversão do “jogo
britanicamente apolíneo” em “dança dionisíaca”, por influência dos movimentos
corporais do samba e da capoeira, seria resultado do processo de mestiçagem
verificado no Brasil.
Estavam lançados os fundamentos da interpretação
conservadora sobre a integração do povo brasileiro, a “fábula das três raças”,
exemplificada no triângulo em que o branco ocupa do vértice de cima, sobrando
para o negro e o índio os vértices da base. A “ausência” do racismo sendo
explicitada pela interdependência dos vértices.
Na verdade, o elogio das potencialidades físicas do
negro, ao mesmo tempo em que concorria para a formação positiva da identidade
nacional brasileira dentro e fora das quatro linhas, também expressava a
imposição de certa hierarquia social. Aos negros caberia ocupar os espaços do
lazer, notadamente do samba, carnaval, capoeira e do futebol, longe da
racionalidade dos postos de comando e de produção do conhecimento. O discurso
elaborado pelo branco sobre as pré-disposições do negro pelas artes corporais,
em última análise, aponta para o lugar subalterno que os afrodescendentes
deveriam ocupar na sociedade. É por isso que não precisamos de cotas no
futebol. Essa foi a parte que coube ao negro na hierarquia brasileira das
raças.
Felipe Dias Carrilho é
historiador e autor do livro “Futebol, uma janela para o Brasil – As relações
entre o futebol e a sociedade brasileira”.
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